segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ariano Suassuna



Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa (PB), em 16 de junho de 1927, filho de Cássia Villa Suassuna e João Suassuna. No ano seguinte, seu pai deixa o governo da Paraíba e a família passa a morar no sertão, na fazenda Acauhan.

Com a revolução de 30, seu pai foi assassinado por motivos políticos no Rio de Janeiro e a família mudou-se para Taperoá, onde morou de 1933 a 1937. Nessa cidade, Ariano fez seus primeiros estudos e assistiu pela primeira vez a uma peça de mamulengos e a um desafio de viola, cujo caráter de “improvisação” seria uma das marcas registradas também da sua produção teatral.

A partir de 1942 passou a viver em Recife, onde terminou, em 1945, os estudos secundários no Ginásio Pernambucano e no Colégio Oswaldo Cruz. No ano seguinte iniciou a Faculdade de Direito, onde conheceu Hermílio Borba Filho. E, junto com ele, fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco. Em 1947, escreveu sua primeira peça, Uma mulher vestida de sol. Em 1948, sua peça Cantam as harpas de Sião (ou O desertor de Princesa) foi montada pelo Teatro do Estudante de Pernambuco. Os homens de barro foi montada no ano seguinte.

Em 1950, formou-se na Faculdade de Direito e recebeu o Prêmio Martins Pena pelo Auto de João da Cruz. Para curar-se de doença pulmonar, viu-se obrigado a mudar-se de novo para Taperoá. Lá escreveu e montou a peça Torturas de um coração em 1951. Em 1952, volta a residir em Recife.Deste ano a 1956, dedicou-se à advocacia, sem abandonar, porém, a atividade teatral. São desta época O castigo da soberba (1953), O rico avarento (1954) e o Auto da Compadecida (1955), peça que o projetou em todo o país e que seria considerada, em 1962, por Sábato Magaldi “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”.

Em 1956, abandonou a advocacia para tornar-se professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco. No ano seguinte foi encenada a sua peça O casamento suspeitoso, em São Paulo, pela Cia. Sérgio Cardoso, e O santo e a porca; em 1958, foi encenada a sua peça O homem da vaca e o poder da fortuna; em 1959, A pena e a lei, premiada dez anos depois no Festival Latino-Americano de Teatro.

Em 1959, em companhia de Hermílio Borba Filho, fundou o Teatro Popular do Nordeste, que montou em seguida a Farsa da boa preguiça (1960) e A caseira e a Catarina (1962). No início dos anos 60, interrompeu sua bem sucedida carreira de dramaturgo para dedicar-se às aulas de Estética na UFPe. Ali, em 1976, defende a tese de livre-docência A Onça castanha e a Ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira.

Aposenta-se como professor em 1994.

Membro fundador do Conselho Federal de Cultura (1967); nomeado, pelo Reitor Murilo Guimarães, diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPe (1969). Ligado diretamente à cultura, iniciou em 1970, em Recife, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. Convocou nomes expressivos da música para procurarem uma música erudita nordestina que viesse juntar-se ao movimento, lançado no Recife, em 18 de outubro de 1970, com o concerto “Três Séculos de Música Nordestina - do Barroco ao Armorial" e com uma exposição de gravura, pintura e escultura. Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, no Governo Miguel Arraes (1994-1998).

Entre 1958-79, dedicou-se também à prosa de ficção, publicando o Romance d´A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e História d´O rei degolado nas caatingas do sertão / Ao sol da Onça Caetana (1976), classificados por ele de “romance armorial-popular brasileiro”.

Sexto ocupante da Cadeira nº 32, eleito em 3 de agosto de 1989, na sucessão de Genolino Amado e recebido em 9 de agosto de 1990 pelo Acadêmico Marcos Vinicios Vilaça.

Membro da Academia Paraibana de Letras e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2000).

Fonte: www.academia.org.br

OBRAS :

• Uma mulher vestida de Sol (1947).
• Cantam as harpas de Sião ou O desertor de Princesa (1948).
• Os homens de barro (1949).
• Auto de João da Cruz (1950).
• Torturas de um coração (1951).
• O arco Desolado, (1952).
• O castigo da soberba (1953).
• Auto da Compadecida (1955).
• O Santo e a Porca - O casamento suspeitoso (1957).
• O homem da vaca e o poder da fortuna (1958).
• A Pena e a Lei (1959).
• Farsa da boa preguiça (1960).
• A caseira e a Catarina (1962).
• A Pedra do Reino (1971)
• História d’O Rei Degolado nas caatingas do sertão (1977).
• As conchambranças de Quaderna, (1987).
• O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, (1971).
• O santo e a porca. O casamento suspeitoso (1974).
• A História de Amor de Fernando e Isaura (1994).
• A História de Amor de Romeu e Julieta (1996).
• O rico avarento
• O castigo da soberba
• Ao sol da Onça Caetana

Entrevistas

entrevista feita por Márcio Marciano e Sérgio de Carvalho em 1998, na “Revista Vintém”.

Teatro Espanhol

Eu escrevia poesia, e foi ele [Hermilo Borba Filho] quem começou a me estimular a escrever teatro. Inclusive quando eu conheci Hermilo eu já tinha feito os meus primeiros poemas, baseados no romance popular. Aí ele disse: “Ariano, você precisa escrever para teatro, e você precisa conhecer o teatro de Garcia Lorca”. Pela minha poesia ele achava que eu ia encontrar em Lorca um guia, um irmão mais velho, porque antes eu tinha tentado uma experiência com teatro, mas muito menino, com dezessete anos de idade.
Mas quando Hermilo me colocou nas mãos o teatro de Lorca, aí foi uma revelação. Porque o mundo de Lorca parecia com o meu, era um mundo de cavalos, de touros, de ciganos e coisas parecidas com o sertão. Aí eu comecei a escrever teatro. Escrevi minha primeira peça por encomenda dele, por estímulo e insistência dele. Lembrei da experiência falhada, mas aí eu disse: “Vamos lá, vamos tentar”. E foi aí que eu fiz Uma mulher vestida de Sol. Na primeira versão de Uma Mulher Vestida de Sol nota-se muito presente a influência de Lorca, e não só de Lorca, também de outros autores espanhóis pelos quais eu tinha sido encantado na época. Alejandro Casona, por exemplo, isso sem falar nos clássicos, como Calderón de la Barca, que exerceu uma influência muito grande sobre mim. Inclusive depois que eu fui me aproximando muito mais de Calderón, Lope de Vega e Cervantes do que de Garcia Lorca. Mas Lorca foi quem indicou o caminho.

Teatro Barroco

Eu acho o barroco uma coisa muito importante para o Brasil. Na minha visão, boa parte dos grandes artistas brasileiros baseia-se no barroco ainda hoje. Normalmente a palavra barroco é usada no sentido pejorativo. Para mim não é. A grande coisa do barroco é que ele é um estilo de arte e uma visão do mundo, que se caracteriza pela unidade dos contrários, o que é muito importante para o Brasil. [...] o lado religioso do barroco tem sua contrapartida nisso que eu estava chamando de estilo picaresco. Eu gosto muito do auto sacramental. Eu gosto muito do auto da linha vicentina, onde se une o pensamento religioso a uma visão cômica e satírica. Para isso se corrige esse excesso de idealismo por um risco realista, do mesmo jeito que acontece em Quixote, que é um sujeito idealista: Sancho o chama a terra de vez em quando.

Literatura de cordel

O meu interesse por teatro surgiu no circo. Porque eu fui um menino sertanejo, do interior, e os primeiros espetáculos de teatro que eu vi foram no circo. [...] No circo eu conheci também um palhaço que se chamava Gregório, que me marcou muito. [...] Eu tenho para mim que essas coisas, junto com os folhetos de cordel, foram muito importantes na minha formação de dramaturgo.

Estudos

O AUTO DA COMPADECIDA E O ESTILO DE ÉPOCA

O teatro, isto é, o texto teatral é uma forma cultural, diferente de outras formas culturais que têm no texto seu veículo de comunicação. Uma peça teatral, portanto, não é a mesma coisa que um romance, um conto ou um poema, esse últimos indicativos de outra forma cultural, a Literatura.

Em linhas gerais, o teatro recebe um impacto muito maior dos condicionamentos de um dado momento histórico, do que, por outro lado, recebe a literatura. Esses impactos se refletem na temática, no tratamento do assunto, nas técnicas propriamente teatrais (cenarização, cenografia, ritmo, iluminação, etc.). Por outro lado, uma peça teatral pode descobrir motivos de criação em outras modalidades essas que podem ou não interessar à Literatura.

Uma tragédia de Ésquilo, concebida nos elementos estruturais da cultura grega clássica, pode adquirir uma roupagem interpretativa moderna, e, como representação de um texto, ser perfeitamente assimilável pelo público contemporâneo, tornando-se com isso uma peça moderna.

O grande dramaturgo brasileiro, Guilherme de Figueiredo, compôs uma série de textos do teatro moderno brasileiro, que consistem na imposição de uma nova "roupagem" a determinados temas da cultura grega clássica.

Em resumo, quando tentamos verificar a que estilo de época se liga um texto teatral, deveremos fazê-lo, não em função de critérios válidos para a Literatura, mas em função de critérios possíveis para a história do teatro.

Nesse sentido, verificamos que Auto da Compadecida apresenta os seguintes elementos que permitem a identificação de sua participação num determinado estilo de época da evolução cultural brasileira:

1- O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é basicamente religioso. Assim o entendeu Paula Vicente, filha de Gil Vicente, quando publicou os textos de seu pai, no século XVI, ordenando-os principalmente em termos de autos e farsas.
Essa proposta conduz a que a primeira intenção do texto está em moldá-lo dentro de um enquadramento do teatro medieval português, ou mais precisamente dentro das perspectivas do teatro de Gil de Vicente, que realizou o ideal do teatro medieval um século mais tarde, isso no século XVI, portanto, em plano Quinhentismo (estilo de época).

2- O texto propõe-se como resultado de uma pesquisa sobre a tradição oral dor a romanceiros e narrativas nordestinas, fixados ou não em termos de literatura de cordel. Propõe, portanto, um enfoque regionalista ou, pelo menos, organiza um acervo regional com vistas a uma comunicação estética mais trabalhada.

3- A síntese de um modelo medieval com um modelo regional resulta, na peça, como concebida pelo Autor. Se verificarmos que as tendências mais importantes do Modernismo definem-se no esforço por uma síntese nacional dos processos estáticos, poderemos concluir que o texto do Auto da Compadecida se insere nas preocupações gerais desse es tilo de época, deflagrado a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Um modelo característico dessa síntese se encontra em Macunaíma, de Mário de Andrade, de 1927, e em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1956), entre outros.

O ESTILO DO AUTOR

Entende-se por estilo do Autor a modalidade de manipulação criadora através da qual o escritor cria sua obra. O estilo do Autor, portanto, é a linguagem através da qual o texto alcança sua forma final e definitiva.

Quando se faz a interpretação de uma peça teatral, o estilo do Autor deve ser analisado dentro de uma perspectiva totalmente diferente daquela que adotaríamos para a interpretação do romance, do conto, da novela, do poemas - da Literatura, enfim.

Isso acontece porque a concepção do texto teatral baseia-se na finalidade do mesmo: a representação por atores. Já o texto literário é concebido para ser lido e meditado pelo leitor, assumindo, portanto, outra feição.

Feita essa observação, vamos reparar que Ariano Suassuna procura definir a forma final de seu texto através dos seguintes elementos:

1- O Autor não propõe, nas indicações que servem de base para a representação, nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista.
2- O Autor busca encontrar uma expressão uniforme para todas a personagens, na presunção de que a diferença entre os atores estabeleça a diferença nos chamados registros da fala.
3- A composição da linguagem é a mais próxima possível da oralização, isto, é, o texto serve de caminho para uma via oral de expressão.
4- Os únicos registros diferentes correm, com indicados no próprio texto, por conta:
a) do Bispo, "personagem medíocre, profundamente enfatuado" (p.72), como se nota nesta passagem:
"Deixemos isso, passons, como dizem os franceses" (p.74).
b) de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras desataviadas, embora divinas, porque são concebidas como encarnadas em pessoas comuns, como o próprio João Grilo:
"MANUEL: Foi isso mesmo, João. Esse é um dos meus nomes, mas você pode me chamar de Jesus, de Senhor, de Deus... Ele / isto é, o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus". (p.147)
A COMPADECIDA: Não, João, por que iria eu me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, um invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo (p.171).
5- Quatro denominações de personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: João Grilo, Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chicó. Quanto ao Encourado, o Autor dá a seguinte explicação:
Este é o diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro. (p.140)
6- Na estrutura da peça, isto é, na forma final do texto é que se revela o estilo do Autor, concebido com o a linguagem através da qual ele cria e comunica sua mensagem fundamental.

A ESTRUTURA DO AUTO DA COMPADECIDA
O estudo do Auto da Compadecida pode ser feito de dois ângulos que se completam:
a) a técnica de composição teatral
b) a estrutura propriamente dita, ou a forma final do texto.

1- TÉCNICA DE COMPOSIÇÃO. Aqui faremos as seguintes observações:
A- A peça não se apresenta dividida em atos. Como o autor dá plena liberdade ao encenador e ao diretor para definirem o estilo da representação, convém anotar que são por ele sugeridos três atos, cuja divisão ou não por conta dos responsáveis pela encenação:
Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço (p.71).
Se se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará a aqui a cena do Julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando(p.137).
B- Do ponto de vista técnico, o Autor concebe a peça como uma representação dentro de outra representação.

/.../ o Autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno (p.22).
A representação dentro da representação caracteriza-se:
a) pela apresentação do Auto da Compadecida como parte de um espetáculo circense, espetáculo esse simbolizado no Palhaço, que faz a apresentação da peça e dos atores.
b) pela apresentação do Auto propriamente dito, com sua personagens.
Como a representação ocorre num circo, o Palhaço marca as situações técnicas e estabelece a ligação entre o circo e a representação no circo.
C- Ariano Suassuna dá plena liberdade ao diretor, no que respeita à definição do cenário, que poderá "apresentar uma entrada de igreja à direita, com um apequena balaustrada ao funda /../. Mas tudo isso fica a critério do ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenário /.../" (p.21).

D- Percebe-se, portanto, que a técnica de composição da peça segue uma linha simplista, solicitada pelo próprio Autor, o que faz residir a importância da mesma apenas na proposição dos diálogos e no decurso da ação conseqüente.
2- A ESTRUTURA propriamente dita, isto é, a forma final do texto é o elemento fundamental par a compreensão da peça.

A - Personagens. A peça apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligação e comando do espetáculo.

PRINCIPAL: João Grilo
OUTRAS: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demônio.
LIGAÇÃO: Palhaço
As personagens são colocadas em primeiro lugar na análise da estrutura da peça porque ela assumem uma posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância do texto.
• João Grilo é a personagem principal porque atua como criador de tosa as situações da peça.
• As demais personagens compõem o quadro de cada situação.
• O Palhaço, representando o Autor, liga o circo à representação do Auto da Compadecida.
Organizado o quadro desses personagens, vejamos agora as características de cada uma delas.
a) JOÃO GRILO. A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo.
"PALHAÇO: Auto da Compadecia! Umas história altamente moral e um apelo à misericórdia.
JOÃO GRILO: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada" (p.24).
Mas a importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do fato de que as situações do Auto da Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem:
1ª) a benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: "Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era " Que maluquice, que besteira!", agora "Não veja mal nenhum em se abençoar as criatura de Deus!" (p.33).
2ª) a loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: /.../ "É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido".(p.40). "Não sei, é a mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro"(p.41).

3ª) o testamento do cachorro. JOÃO GRILO: "Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, coma a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoada e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão" (p.63-64).

4ª) o gato que "descome dinheiro". JOÃO GRILO: "Pois vou vender a ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descome dinheiro" (p.38). "Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões). Esta aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente"(p.96).

5ª) a gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOÃO GRILO: "Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer" (p.122).

6ª) a "visita" ao Padre Cícero. JOÃO GRILO: "Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta" (p.127).
Essa situação decorre da anterior, mas pode ser considerada com o independente.

7ª) o julgamento pelo Diabo (o Encourado). JOÃO GRILO: "Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!"(p.144).

8ª) o apelo à misericórdia (À Virgem Maria). JOÃO GRILO: "Ah, isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?" (p.169).

Observemos agora a distribuição das personagens nas situações acima definidas, situações essas todas elas deflagradas por João Grilo, como já foi observado:

SITUAÇÃO/ PERSONAGENS/ CONTEÚDO DA SITUAÇÃO
1ª João Grilo Chicó Padre João: a bênção do cachorro da mulher do padeiro.Expediente de João Grilo: o cachorro pertence ao Major Antônio Morais.
2ª João Grilo Chicó Antônio Morais Padre: chega o Major Antônio Morais.Expediente de João Grilo: o Padre João está maluco, benze a todos e chama todo mundo de cachorro.
3ª João Grilo Padre MulherPadeiro Chicó Sacristão Bispo: o testamento do cachorro morto.Expediente de João Grilo: o cachorro morto, encomendado em latim e tudo mais, deixa no seu testamento dinheiro para o Sacristão, para o Padre e para o Bispo.Fonte do dinheiro: o Padeiro e sua mulher.
4ª João Grilo Chicó Mulher: a mulher do Padeiro lamenta a perda de seu cachorro.Expediente de João Grilo: arranja-lhe um gato que descome dinheiro. Vende-o e afaz seu lucro.
5ª João Grilo Chicó Bispo Padre Padeiro Frade Sacristão Mulher Severino (do Aracaju) Cangaceiro: o assalto do cangaceiro Severino do Aracaju.Expediente de João Grilo: a gaita que fecha o corpo e ressuscita. A bexiga cheia de sangue.Evento especial: todas as personagens morrem, inclusive João Grilo. Salva-se Chicó
6ª Palhaço João Grilo Chicó Todas as demais personagens Demônio O Encourado Manuel: ressurreição no picadeiro do circo. O Julgamento pelo Demônio, pelo Encourado e por Manuel (Cristo).Expediente de João Grilo: forçar o julgamento, ouvindo os pecadores.
7ª Todas as personagens A Compadecida: condenação dos pecadores, Expediente de João Grilo: apelo à misericórdia da Virgem Maria.
Pela composição do quadro acima, nota-se que em todas as seqüências a presença de João Grilo é fundamental. Daí a afirmação de que a peça gira em torno dessa personagem, do ponto de vista estrutural.
Que é João Grilo?
• João Grilo é uma figura típica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo.
• Habituado a sobreviver e a viver a partir e expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira.
• Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida. É essa convicção que o salva. E ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando- à vida e à companhia de Chicó. É uma oportunidade inusitada de ressurreição e retorno à existência. Caberá a ele provar que essa oportunidade foi ou não bem aproveitada.
b) CHICÓ. Companheiro constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção íntima. Mas é um amigo leal.
c) PADRE JOÃO, O BISPO e o SACRISTÃO. Essas personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro.
d) ANTÔNIO MORAIS. É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda.
e) PADEIRO e sua MULHER. Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério.
f) SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na seqüência de número cinco, porque nessa seqüência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.
g) O ENCOURADO e o DEMÔNIO. Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo).
h) MANUEL. É o Cristo negro, justo e onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudência.
i) A COMPADECIDA. É Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo.
B- Estrato metafísico. Pela atuação das personagens, pelo sentido global que encima a peça, percebemos claramente que nela existe uma proposição metafísica, vinculada à Igreja Católica e à idéia da salvação.
Ao lado da significação global do texto, como estrutura, o Palhaço define essa proposição claramente.
O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica - trecho fora do enredo dramático em que as idéias e as intenções ficam claramente expressas:
PALHAÇO: "Ao escreve esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem direito a certas intimidades" (p.23-24).
"/.../ Espero que todos os presente aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes" (p.137).
A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Católica.
PROBLEMÁTICA DA OBRA
Pela estrutura da peça, pudemos notar que:
1- sua intenção clara e expressa é de natureza moral, e de moral católica;
2- os componentes estruturais do texto revelam personagens que simbolizam pecados (maiores ou menores), que recebem o direito ao julgamento, que gozam do livre-arbítrio e que são ou não condenados.
Percebe-se, de outro lado, que a preocupação maior reside em compor um auto de moralidade, ao estilo quinhentista português (modelo Gil Vicente), mas seguindo alinha do teatro dirigido aos catecúmenos, do Padre Anchieta.
Para tanto, a peça se embasa em determinadas tradições localistas e regionalistas do folclore, com vistas à sua sublimação como instrumento pitoresco de comunicação com o público (que, no caso, seriam os catecúmenos).
Com isso, nota-se que a realidade regional brasileira, especificamente a realidade nordestina, está presente através de seus instrumentos culturais mais significativos, as crenças e a literatura de cordel.
O autor não pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela moralizar os homens, isto é, dinamizar nas usas consciências a noção do dever humano e da responsabilidade de cada um em relação a seus semelhantes e em relação a Deus, onisciente e onipresente.
CONCLUSÃO - SÍNTESE
Como proposição estética, o Auto da Compadecida procura corporificar as seguintes noções:
1- a criação artística, o teatro em particular, devem levar o povo, a cultura desse povo a ele mesmo. Daí o circo, seu picadeiro e a representação dentro da representação.
2- menos do que essa realidade regional e cultural de um povo, o que importa é criar um projeto que defina idéias e concepções universais (as da Igreja, no caso) com o fim de consciencializar o público. Por esse motivo a realidade regional nordestina é, no caso, instrumento de uma idéia e não fim em si nessa;
3- criar um texto teatral é, antes de tudo, criá-lo para uma encenação, daí a absoluta liberdade que o Autor 'da para qualquer modalidade de encenação. O próprio texto final da peça, como editado, é o resultado da experiência colhida a representação pública.
NOTA: As páginas indicadas se refere ao Auto da Compadecida, 10ª ed., Agir Editora, 1973.
Essa análise está no livro Vestibular-76 (1976), da Editora O Lutador-MG, edição dirigida aos exames vestibulares da UFMG. A equipe: Delson Gonçalves Ferreira, Teotônio Marques Filho, Juarez Távora de Freiras e Luís Paulo de Brito. O Lutador continua publicado a análise de livros da lista obrigatória daquela universidade mineira.


Vídeos:








Para saber mais: www.arianosuassuna.com.br

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