quinta-feira, 18 de junho de 2009

EURÍPEDES


O homem barbado que vivia com seus livros numa caverna na ilha de Salamina era um estranho entre os homens do seu tempo. Dizia-se de Eurípides que passava dias inteiros sentado, a meditar, desprezava o lugar comum e era melancólico, reservado e não sociável.

Nos cinqüenta anos de teatro, durante os quais escreveu noventa e duas peças, conquistou apenas cinco prêmios, sendo o quinto concedido após sua morte. Permanente alvo dos poetas cômicos, especialmente de Aristófanes, tornou-se objeto das mais desenfreadas calúnias e zombarias.

Julgado por impiedade deixou Atenas totalmente desacreditado. A corte Macedônia do rei Arquelau honrou-o. Mas apenas dezoito meses depois veio tragicamente a falecer. Eurípides é o exemplo clássico do artista incompreendido.
Sócrates colocava-o acima de todos os outros dramaturgos e jamais ia ao teatro senão quando Eurípides tinha uma de suas peças encenadas. Sófocles respeitava seu colega-dramaturgo, ainda que não aprovasse seu realismo.
A história de Eurípides é a de um homem que estava fora de sintonia com a maioria. Era um livre-pensador, humanitário e pacifista num período que se tornou cada vez mais intolerante e enlouquecido pela guerra.

Se Eurípides era um acirrado crítico de seu tempo, podia contudo, assinalar com justiça que não fora ele quem mudara e sim Atenas. Rica, poderosa e cosmopolita em virtude de seu comércio e imperialismo, a Atenas de sua juventude ofereceu o solo adequado para a filosofia liberal que mais tarde experimentou dias ruins.
Eurípides esteve estreitamente ligado à religião que mais tarde questionaria com tão ingrata perseverança.
Foi um dos muitos livres-pensadores da Europa, criados numa atmosfera religiosa. Talvez uma certa ligação com religião seja sempre pré-requisito para o agnosticismo ativo.

Eurípides permaneceu susceptível aos valores estéticos da adoração religiosa até o fim de seus dias.
Seu fascínio como dramaturgo está nesse dualismo entre o pensamento e a fantasia, entre emoção e a razão.

Os sofistas, que questionavam todas as doutrinas e ensinavam a hábil arte do raciocínio, o enfeitiçaram para sempre. Vários pensadores não convencionais que expunham diversas doutrinas racionalistas e humanistas imbuíram Eurípides de um apaixonado amor pela verdade racional. Foi a partir deles que o primeiro dramaturgo "moderno" desenvolveu o hábito do sofisma em seu diálogo e adaptou uma perspectiva social que sustentava a igualdade de escravos e senhores, homens e mulheres, cidadãos e estrangeiros.

Quando Atenas se empenhou na luta de vida ou morte com a Esparta democrática, provinciana e militarista, acorreu em sua defesa não apenas como soldado mas também como propagandista que exaltava seus ideais.

Prolongando-se a guerra com Esparta e sofrendo Atenas derrota após derrota, o povo perdeu a predisposição para a razão e tolerância. Péricles, o estadista liberal, viu sua influência desaparecer, foi obrigado a permitir o exílio de Anaxágoras e Fídias e chegou mesmo a sofrer um impeachment. Um a um, Eurípides viu seus amigos e mestres silenciados ou expulsos da cidade.

Em meio a esses acontecimentos, Eurípides continuou a escrever peças que mantém em solução os ensinamentos dos exilados, sendo pessoalmente salvo do banimento em parte porque suas heresias eram mais expressas por suas personagens que por ele mesmo e em parte porque o dramaturgo apresentava sua filosofia num molde tradicional. Em aparência era mais formal que o próprio Ésquilo.

O ateniense comum era abrandado por um final convencional, as subtilezas da peça podiam escorregar por suas mãos e seus sentidos excitavam-se com as doces canções e músicas. Eurípides pôde continuar em Atenas por longo tempo mesmo sendo considerado com suspeita e suas peças recebendo normalmente o segundo ou terceiro lugar dos vigilantes juízes do festival de teatro.

A estrutura artística desigual e muitas vezes enigmática de seu trabalho prova que foi grandemente cerceado por essa necessidade de estabelecer um compromisso com o público inamistoso. Suas peças frequentemente têm dois finais: um não convencional, ditado pela lógica do drama e outro convencional, para o povo, violando a lógica dramática.

Se algumas vezes Eurípides comprou sua liberdade intelectual às custas da perfeição, a compra foi uma barganha em termos de evolução dramática. Enquanto brincava de cabra-cega com seu público, conseguiu criar o mais vigoroso realismo e a crítica social da cena clássica. O povo simples começou a aparecer em suas peças e seus heróis homéricos eram frequentemente personagens anônimos ou desagradáveis. Outras personagens homéricas com Electra e Crestes são até hoje casos caros à clínica psiquiátrica. Eurípides e o primeiro dramaturgo a dramatizar os conflitos internos do indivíduo sem atribuir a vitória final aos impulsos mais nobres.

A obra de Eurípides constitui, sem dúvida alguma, o protótipo do moderno drama realista e psicológico.

Eurípides poderia sem dúvida Ter continuado a criar poderosos dramas pessoais ad infinitium. Mas a vida tornava-se cada vez mais complicada para um pensador humanista. Em 431, ano de Medeia, Atenas entrou em sua longa e desastrosa guerra com Esparta. Não era momento para um homem como Eurípides preocupar-se com problemas predominantemente pessoais.

Por certo, ao envelhecer, Eurípides pouco fez para granjear a favor de seus concidadãos. Na verdade, atormentavam-no ainda mais do que ao tempo em que escrevia seus mais amargos dramas sociais. Foi declarado blasfemo e sofista. Segundo o poeta cômico Filodemo, Eurípides deixou Atenas porque quase toda a cidade "divertia-se às suas custas".

Nenhum comentário:

Postar um comentário